20201221

O fenômeno Lo-Fi e a música brasileira


O desenho de uma garotinha estudando, faça chuva ou faça sol, é transmitido ao vivo no YouTube por mais de dez horas por dia. O sucesso do canal vem das músicas que acompanham o anime da Garota Estudiosa, como é conhecida na internet, cujos vídeos contam com mais de 300 milhões de visualizações ao longo de cinco anos. Bem-vindos ao mundo das rádios amadoras Lo-Fi, fenômeno que tomou conta da plataforma de vídeo.

A premissa é simples, uma playlist de remixes e músicas originais de hip-hop na estética Lo-Fi (low fidelity, ou baixa fidelidade, algo meio caseiro), tocadas continuamente por horas a fio. As batidas, melancólicas e calmas, são sempre acompanhadas por um anime, geralmente de uma garota, fazendo coisas banais como estudar ou ficar deitada na cama, mexendo no celular. Os títulos dos vídeos são sugestivos, “rádio lofi hip hop – batidas para relaxar/estudar” ou “rádio 24/7 lofi hip hop – batidas para estudar/curtir/relaxar”.


A procura por uma trilha sonora digital capaz de acalmar e ajudar a focar tem se tornado constante no mundo digital, do ASMR ao White Noise. Mas o Lo-Fi é o método mais popular entre os millennials, e a música brasileira não escapou dessas batidas. No YouTube, existem vários remixes de artistas como Tim Maia e Tom JobimUma playlist, que compila 68 versões, conta com mais de 1 milhão de visualizações. Apesar do boom recente, a prática é antiga e encontra raízes brasileiras anteriores aos remixes atuais.


No Twitter, uma colaboração entre artistas foi lançada onde cada um fez uma releitura brasileira da Garota Estudiosa©Davi Akira


Faça você mesmo


Zeca Viana, músico indicado ao Aposta MTV e pesquisador brasileiro, define o Lo-Fi como um modo de fazer música. “Eu não vejo como um gênero musical específico, mas como um modo de utilizar o que se tem à mão para produzir música, geralmente equipamentos amadores.” Para o músico, a forma de fazer acaba criando uma linguagem, que pode gerar um forró Lo-Fi, um hip-hop Lo-Fi e até um metal Lo-Fi.


O termo foi cunhado em 1986, pelo DJ americano William Berguer, que batizou seu programa de rádio de Lo-Fi em contraste com o termo High Fidelity, ou Hi-Fi — jargão utilizado pela indústria fonográfica para referir-se ao material de alta definição. O programa tocava 30 minutos semanais de fitas K7 enviadas por ouvintes. “Foi aí que surgiu essa ideia como um termo bem específico, mas bandas gravam de forma precária desde os anos 1960”, diz o músico.


Inspirados na ética DIY (o faça você mesmo), a estética encontrou popularidade na década de 1970, com a K Records. “Alguns gêneros musicais se aproximam do Lo-Fi e é difícil diferenciar o que é efetivamente Lo-FI e o que é o gênero”, afirma Viana. O músico cita a banda Beat Happening, o início das gravações de Beck e Daniel Johnston como exemplos. “Entre esses artistas são produzidas sonoridades muito diferentes, mas a ideia da gravação caseira é o que os une.”


As horas dedicadas ao estudo se tornaram piada na web. Afinal, à qual assunto a Garota Estudiosa dedica tanto seu tempo?©Ana Escura


Meu Brasil brasileiro


No Brasil, o Lo-Fi começa com gravações da Baratos Afins, como o Disco Voador do Arnaldo Baptista, gravado em fita cassete, conta Viana. Bandas como Fellini, um grande nome da gravação caseira, se tornaram influência para Chico Science e Nação Zumbi. A primeira versão da música “A Cidade” foi gravada em Lo-Fi, sendo lançada posteriormente em Hi-Fi no álbum “Da Lama Ao Caos”, de 1994.


Hoje em dia, bandas novas como Boogarins e até mais antigas como o Fresno apostam nessa pegada. Desde 2010, Zeca produz a coletânea Recife Lo-Fi, onde faz um mapeamento de bandas e artistas que gravaram em casa nos últimos dez anos. O artista também tem um programa de rádio que divulga a produção musical independente dos estúdios caseiros pernambucanos.


A relação do Lo-Fi com o rádio não é nova. Nascido no veículo, o estilo encontrou uma nova vida em rádios piratas no YouTube. Felipe Satierf, criador do canal SΔ†IERF, faz parte dessa nova leva. Ele é um dos jovens que estão revisitando a música brasileira através de versões Lo-Fi.


Autor de remixes de Seu JorgeLegião Urbana e Tribalistas, o YouTuber afirma que não conhece a estética há muito tempo e que se inspirou em outros canais. “Eu já mexia com música e queria fazer algo mais relaxante, percebi que o Lo-Fi se encaixa perfeitamente com as músicas mais antigas, como a Bossa Nova.” Ele vê seus vídeos como uma maneira de apresentar músicas consagradas para uma nova geração. “Você coloca uma batida contemporânea em uma música que já é hit, é certeza de sucesso.”


Satierf compartilha que, quando descobriu o estilo, estava triste, procurando músicas que o reconfortassem. Para o YouTuber, o Lo-Fi é cultuado por muitos jovens que estão tristes ou deprimidos. A percepção não é exclusiva de Felipe. Em 2019, a Vice se juntou com um dos maiores canais do YouTube Lo-Fi, College Music, e fez uma campanha contra o suicídio. A ideia veio após os criadores do canal perceberem a quantidade massiva de comentários sobre tristeza, estresse e suicídio em seus vídeos.


Para Zeca Viana, a nova geração procura no Lo-Fi um passado não vivido, a saudade de algo que não se teve. “O jovem está no meio de um turbilhão estético gigante, a nostalgia é um aglutinador que dá um horizonte pra quantidade de informações existentes.” O músico vê o boom do Lo-Fi como uma necessidade da nova geração de ressignificar e demarcar seu território estético. Ele acredita que a linguagem está sendo utilizada para que os mais novos encontrem sua própria identidade.



Osmar Portilho

Do UOL, em São Paulo

04/02/2019 04h00


Um pouco cansada, mas bem concentrada em suas anotações, a garota escreve e ocasionalmente se distrai com seu gato na janela. Ela está em um quarto atolado por livros, uma planta, seu laptop e algumas miudezas. Do lado do vídeo, a caixa do bate-papo dividida entre as 12 mil pessoas que assistem ao canal ChilledCow dão amostras do alcance do vídeo com os assuntos mais aleatórios possíveis (desde um brasileiro falando sobre o Carnaval até uma jovem russa falando que precisa estudar para uma prova de matemática).


Em uma era onde a música foi dominada pelas plataformas digitais de streaming, o YouTube revitaliza o formato de rádio e playlists em um modelo inusitado. Com transmissões ao vivo que chegam a durar meses, o ChilledCow já chegou ao número de 2,4 milhões de inscritos com uma chamada básica: "lofi hip hop radio - batidas para relaxar ou estudar".


O canal é seguido de perto pelo Chillhop Music, hoje com 2 milhões de seguidores. Baseado em Roterdã, na Holanda, o selo musical surgiu em 2013 em um blog e hoje também coleciona números impressionantes, como os 167 milhões de visualizações que tem no YouTube. A premissa é parecida. Batidas simples que vão do jazz ao hip-hop, mas desta vez a ilustração dá lugar para um guaxinim em um cenário típico millennial: cama, café, computador e celular carregando.


Tente assistir o vídeo em www.youtube.com


Agnis Leznins, gerente do Chillhop, contou ao UOL por e-mail que o início do selo se deu em sessões de skate entre o criador da plataforma, Bas van Leeuwen, e seus amigos, que na época ouviam muito Nujabes e J Dilla, produtores que trabalham justamente nesse segmento de produzir batidas instrumentais. "Ele quis montar um canal no YouTube simplesmente onde pudesse reunir esse tipo de música. Hoje, a maior parte das músicas são recomendadas por nossos amigos, mas também pela nossa equipe que busca talentos", afirmou.


O sucesso no YouTube

Há uma explicação rasa, mas pertinente pelo sucesso das batidas lo-fi. São canções empolgantes e que não demandam de muita atenção por seu espectador. Especialmente pelos millennials, uma geração de jovens hiperconectada onde sua rotina é ditada por realizar inúmeras tarefas simultaneamente. As batidas lo-fi automaticamente preenchem um vazio sonoro, mas por não terem grande complexidade instrumental ou vozes não interferem em outras atividades, como leitura, estudo ou simplesmente rodar pelas redes sociais.


"É um bom tipo de música para se ouvir quando está estudando. Você pode deixar rolando no fundo e nem perceber", explicou Leznins, do Chillhop. "Quando estamos ativamente ouvindo e prestando atenção, estes instrumentais lo-fi também têm um certo tipo de melancolia. Eu acho que boa parte das pessoas se identifica com isso também".


Basicamente, as estações lo-fi se relacionam muito como uma boa curadoria de playlist, algo bem distante dos complexos algoritmos do Spotify, Apple e similares. A estética do gênero lo-fi se baseia principalmente em um tipo de produção quase caseira, no qual as imperfeições de gravação podem ser ouvidas em um estilo próximo da mentalidade "faça você mesmo".


Tente assistir o vídeo em www.youtube.com


A playlist virou negócio

A história da Chillhop Music, um hobby que se tornou uma empresa, se repete algumas vezes. No Reino Unido, o canal College Music segue todo o formato das estações anteriores: batidas instrumentais lo-fi, transmissões ao vivo e uma animação cativante no vídeo. Com mais de 500 mil inscritos, o canal foi fundado pelos britânicos Jonny Laxton e e Luke Pritchard, ambos na casa dos 20 e poucos anos. Para eles, um tópico vital para fidelizar seus ouvintes é se fazer presente na rotina das pessoas, como disse em artigo da revista "Vice". "Nós não queremos que encontre a estação e no próximo dia não saiba onde ouviu aquilo", disse Pritchard.


Hoje, a dupla recebe propostas de artistas que se mostram dispostos a pagar para que suas músicas entrem em sua programação. Uma espécie de jabá atualizado para este novo formato de rádio.


Sempre quisemos compartilhar músicas de artistas que amamos. Fazer dinheiro nunca foi a intenção do College Music quando o fundamos. Por isso não queremos de certa maneira lucrar às custas de nossa integridade e qualidade da música que tocamos.


Contramão

Spotify, iTunes, Google Music, Deezer e todas as plataformas de streaming apostam em seus complexos algoritmos para fazerem uma leitura do seu comportamento para criar um perfil e apostar em artistas que você pode gostar na próxima vez que apertar play na ferramenta. A aposta do ChilledCow, Chillhop e College Music parece ter encontrado uma audiência disposta a consumir novidades e ser surpreendida dentro apenas de um estilo, uma espécie de zona de conforto musical.


"As plataformas populares, mesmo com boas intenções, acabam por colocar grupos de pessoas em uma câmara a vácuo. Estes streams dão para as pessoas algumas opções de músicas que elas não saberiam que iriam gostar", definiu Ryan Celsius, dono do canal Celsius, no artigo da "Vice".


Hoje, o DJ gasta cerca de US$ 200 por mês para manter servidores em nuvens onde guarda as faixas que toca em sua estação. Sua renda vem da monetização do YouTube e cerca de US$ 1.500 que recebe do Patreon, plataforma onde seus seguidores contribuem com doações mensais.


"Para mim é menos uma questão de negócio, e sim algo pessoal".

Nenhum comentário:

Postar um comentário