20220523

O Daft Punk não existe mais

FSP, Pedro Antunes, 

O Daft Punk não existe mais.


Sem alarde, despedidas ou uma colossal apresentação final, chegou ao fim a dupla formada por Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter.


Não há qualquer justificativa para o fim do Daft Punk. A falta de explicações, inclusive, faz parte do que representou o duo ao longo dos 28 anos de existência.


O duo publicou apenas um vídeo sob o título de "Epilogue" (ou "epílogo", em português), com um trecho do filme do Daft Punk de 2006 chamado "Electroma", no qual os dois robôs que personalizam os dois músicos vagam pelo deserto e um deles explode.


Melancólico, como qualquer despedida.


Com 6 estatuetas e 12 indicações ao Grammy, o Daft Punk foi um dos grandes nomes da música mundial a se manter firme na contramão da superexposição midiática quase BBBzística a qual qualquer artista do pop é submetido para se manter no jogo.


Nascidos em 1974 e 1975, respectivamente, Homem-Christo e Bangalter tiveram uma banda de rock chamada Darlin' (com a participação de Laurent Brancowitz, músico que depois passou a integrar o Phoenix depois disso) antes de fundarem o Daft Punk.


O que sabíamos sobre a intimidade de cada um deles é pouquíssimo. Curtem ficção científica, como apontou a Rolling Stone EUA ao visitar o estúdio deles em uma rua no sul de Paris, diante de um box de blu-ray com a saga completa (na época) de Star Wars, têm filhos e farrearam o suficiente no início dos anos 90 quando sentiram esse desencanto pelo rock, piraram no acid house inglês e caíram de cabeça nas raves na capital francesa.


O sucesso do Daft Punk ajudou a semear a cultura do "faça você mesmo" na música atual, que abrange nomes como o pop de Billie Eilish à psicodelia do Tame Impala. O álbum de estreia do duo, o histórico "Homework" (de 1997), foi gravado no quarto de Bangalter, com sintetizadores, baterias eletrônicas e um punhado de samples, algo que fazia parte da cultura hip-hop.


Chame-me de romântico, se quiser, mas adorava o anonimato em torno do Daft Punk. Gostava de imaginá-los de fato como robôs que criavam músicas que apontavam para o futuro cada vez mais eletrônico da humanidade.


Isso parecia ficção científica desmedida em 1997, mas é bem comum hoje em dia, quando inteligências artificiais já são capazes de criar músicas a partir do conhecimento acumulado de determinado artista.


Não saber muito sobre Homem-Christo e Bangalter além do que diziam seus discos é old school, é "arte pela arte", sem passar pela intimidade do artista. A música diz tudo o que a gente precisa saber.


No caso do Daft Punk, ao longo de quatro álbuns - "Homework" (1997), "Discovery" (2001), "Human After All" (2005) e "Random Access Memories" (2013) - e uma porção de outras colaborações (como em "Starboy", do The Weeknd), ouvimos os encantos e desencantos de uma vida automatizada.


Em cada disco, a repetição e os loopings se faziam desesperadores e, ao mesmo tempo, hipnóticos, como uma cópia do nosso dia a dia repetitivo e monótono.


Daft Punk brincou com gêneros, flertou com o impossível e com a música orgânica, sem nunca precisar mostrar os rostos ou intimidades para fazer a música ir ao nosso encontro.


Com o fim do duo, encerra-se também a Era do Anonimato na música pop.


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Daft Punk revolucionou o pop com estética dos robôs e volta à forma humana


FSP, Pedro Antunes, 22.02.21


A existência conceitual do Daft Punk era uma deliciosa ficção científica. Robôs humanoides que criavam músicas a partir do nosso cotidiano. Não precisavam "falar" muito. A repetição e os loopings, inspirados pelas raves frequentadas por Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter no início dos anos 90 em Paris, diziam tudo.


Desde o primeiro álbum da dupla, "Homework" (1997), com o hit "Around the World", o Daft Punk mostrou a repetição poderia tomar lugar da poesia para retratar um cotidiano cada vez mais mecânico e globalizado.... 

É interessante analisá-los agora, com o anúncio do fim da dupla, a partir da nossa perspectiva da vida automatizada e completamente dependente das máquinas - com aparelhos como Alexa, que respondem perguntas mais estúpidas ou às questões sobre a previsão do tempo, atendem aos pedidos de tocar música, criam timers e nos lembram dos afazeres do dia.

Daft Punk, formado por dois guris franceses que desencarnaram do indie rock e se apaixonaram pela música eletrônica, sempre foi altamente crítico à decadência do fator humano da sociedade, mas faziam isso a partir de beats e hits perfeitos para a pista de dança.


Como profetas de um futuro robótico e automatizado, o Daft Punk colocou a gente para dançar com um primeiro par de discos revolucionários, "Homework" (1997) e "Discovery" (2001), que celebravam a decadência da humanidade existente em cada um de nós.


Claro, "Harder Better Faster", é um hit poderosíssimo, com uma estética única de flertar com animes futurísticos...


Mas era nas entrelinhas que o Daft Punk fazia estrago


No mesmo disco "Discovery", da celebração da automatização e com a house music levada ao limite com "Harder Better Faster", eles se permitiam sofrer com uma pegada funkeada (na deliciosa e quebradora de corações "Something About Us") ou esfarelar conceitos dos solos de guitarra virtuosos com o looping de "Aerodynamic".


O curioso caso do Daft Punk é que, por mais robótica que fosse a música que o duo criava, ela mantinha os traços humanos.


Fosse em imagens gravadas em cartões de memória daqueles personagens robôs com os quais eles se apresentavam, fosse no sangue que ainda circulava entre as partes ainda humanas deles.


Enquanto Daft Punk caminhava por um terreno bastante desconhecido da música, levando a house e o tecno para além dos limites imagináveis, eles não deixavam de homenagear os grandes artistas da disco, do rock e do pop, o que ficou ainda mais evidente com o passar do tempo.


No limite entre o humano e o robô


Não é por acaso que o terceiro álbum, lançado em 2005, se chamou "Human After All" (algo como "humanos, no fim das contas") e brincavam com esse conceito em, por exemplo, "Robot Rock", o rock robótico do Daft Punk.


Mas o duo ficou longe dos holofotes por um tempo. Oito anos separam "Human After All" de "Randon Access Memories", o álbum derradeiro da dupla, de 2013.


Nesse meio tempo, o mito em torno do Daft Punk cresceu. Kanye West, por exemplo, usou "Harder Better Faster", em "Stronger", no disco "Graduation" (de 2007). No mesmo ano, o duo lançou o poderoso álbum ao vivo, "Alive 2007".


Quando "Randon Access Memories", o Daft Punk mostrou sua versão mais humana até aqui.


Enquanto produtores e DJs da música eletrônica fomentada pelo duo francês se tornavam estrelas de primeira grandeza da indústria, com o uso cada vez mais automatizado dos samples que foram fundamentais para a carreira do Daft Punk, Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter fizeram o oposto.


"Randon Access Memories" é uma ode à música orgânica, aquela tocada por instrumentos de verdade - e por seres humanos, é claro.


Foram vencidas cinco categorias do Grammy com esse disco que tinha as participações de Julian Casablancas (do The Strokes, em "Instant Crush"), Pharrell Williams (em "Lose Yourself To Dance" e "Get Lucky") e Panda Bear (em "Doin' It Right"). Além deles, o guitarrista Nile Rodgers, da banda Chic, assina três faixas.


A mais surreal das músicas era "Giorgio by Moroder", na qual o veterano produtor da música eletrônica Giorgio Moroder narra a própria história enquanto o Daft Punk constrói uma música em torno disso.


Mais oito anos se passaram desde aquele álbum. O Daft Punk seguiu em silêncio, com exceções às participações em "I Feel It Coming" e "Starboy", do The Weeknd. O que era a expectativa por um novo disco terminou com o anúncio hoje (22), de que o duo chegou ao fim.


Por mais triste que a despedida seja, ela faz sentido.


Quando ainda éramos só humanos, o Daft Punk mostrou o futuro das máquinas.


Agora que somos meio humanos, meio máquinas - em uma ideia mais conceitual do que literal, por enquanto -, é chegada a hora do Guy-Manuel de Homem-Christo e Thomas Bangalter voltarem à forma humana, abandonando as personas robóticas que criaram com o duo.


E que esse seja, mais uma vez, o nosso futuro. Humano, afinal de contas.


Pedro Antunes - Daft Punk revolucionou o pop com estética dos robôs e volta à forma humana

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